Pensando na véia, botei Alcione, passei
por Bethânia e Gonzaguinha, acabou surgindo do nada, deu
aquele aperto no peito... Lembrei das nossas conversas, das nossas noites
insones na frente da TV, com aquele cafuné displicente.
Pensei em todas as coisas que eu gostaria de ter dito e, por
displicência, acabei por não dizer; pensei que, por displicência, aquele cafuné
sempre estaria ali, displicentemente. Aquela mão quase involuntária, mas que
sempre soube chegar na hora exata, precisa, sempre um segundo antes do
desespero, um segundo antes de tudo desmoronar. As unhas impecáveis,
o cabelo arrumado e a eterna certeza de que: "Se há jeito para tudo
nessa vida, exceto para morte".
De ti ficou o bom gosto para tudo que há de bom, a vontade de
viver, a certeza de que as coisas sempre podem piorar, portanto, é melhor fazer
por onde. E a inegável necessidade de se lutar por aquilo que se
quer de verdade, mesmo que você não saiba direito o que é isso.
De ti ficaram as conversas francas, as birras, o cheiro de
feijoada, a inesquecível moqueca de arraia, o som alto na vitrola, a cerveja
gelada no domingo, a vontade de conhecer tudo que tiver ao meu alcance e
esticar o braço um pouquinho mais para tentar abraçar o mundo e, se, por
ventura, não conseguir, não tem problema, sempre se pode tentar de novo.
Algumas noites insones serão sempre mais difíceis... Aquele
displicente cafuné já não está mais lá, não há mais necessidade de se
provar quem está certo. Todos nós estivemos redondamente enganados por todo o
tempo. Não, não poderemos ser felizes juntos, não aqui, não agora, não nessa
vida...
Juntos jogamos contra!
Esse Happy Ending do sonho americano está longe, muito
longe de ser a nossa verdade. Não, na sua verdade você teve o seu Happy Ending,
não o dos filmes, mas o real, o que fazia cada dia ser de alguma forma um pouco
"menos pior". Que fez com que tudo à sua volta fosse tão
inesquecível. Não, não estamos falando de perfeição. Estamos sem sombra de
dúvida falando de coragem, da coragem de alguém que nunca teve medo de se
expor, que nunca fingiu ser quem não era. Alguém que acabou por abandonar as
máscaras, mesmo que isso significasse usar a mesma todos os dias.
Estamos falando de alguém que sobretudo continuou. Continuou,
contra tudo e contra todos. Alguém que não teve medo de encarar a vida de
frente, olhar nos olhos do furacão e ir preparar o almoço, porque, acima de
tudo, as pessoas precisam comer.
Não, nem todas as lembranças são azuis e felizes, porque nem
tudo é azul e feliz, mas uma imagem de tudo acaba por se fazer muito clara: a
imagem de uma guerreira que fez a todo momento o que foi preciso ser
feito.
Agora, me perco entre os vinis, entre
os inúmeros sons da minha memória. Consigo
facilmente passear de Stravinsky a Roberto Carlos sem grandes
percalços. Por fim, chegamos a mais um começo, só que, agora, sem
displicências, sem falsas sensações de eternidade, de constante. Só nos resta o
momento que acabou de passar.